Thursday, December 07, 2006

O futuro a Ele pertence

Era Natal. Ou melhor. O Natal se aproximava. Era 1º de dezembro e os Dezembros se aproximavam de mim como um bolero... nossos versos são banais/mas como eu espero/teus beijos nunca mais... A minha boca agora tinha esse dono. Esse gosto, esse cheiro, esse beijo. Ele já fazia parte da minha vida como meus risos, sorrisos, gargalhadas. Problemas e soluções. Ela já fazia parte da minha casa como meus discos e canções digitalizadas. Meus papéis, cartas e livros. Meus lençóis, travesseiros e colchão. Ela já fazia parte do meu corpo. Seu cheiro, seus olhos, sua voz. Seu sexo, seu movimento, suas alucinações. Ele já fazia parte do meu pensamento, linguagem e discurso. Idéias malucas, constatações serenas, relatos, perguntas com ou sem respostas. Ele já fazia parte da minha alma. Lágrimas, lembranças, previsões sobre o futuro. Mas era Dezembro e os Dezembros eram doídos de todos os doidos meses. Tudo ia acabando e só esse amor começava, crescia. Tudo era adeus e a minha alma estava embebida de saudade. Essa saudade que nos fez continuar nos vendo.
A família, as dores, os sofrimentos. Tudo era Dezembro. E saber dele era saber de tudo. De tudo o que eu fui e que foram pra mim. De tudo o que eu ainda ia ser.
Mas era Dezembro. As crianças sempre me comoviam mais nessa época. Eu já tinha tentado ter um filho, mas era responsabilidade demais e acabei desistindo. Mas o Papai Noel trazia para mim amor demais, amor de mãe que ainda não sei bem se tive ou se deixei escapar.
No início da semana, eu havia visto um ator global com um pingo de crianças mirradas, cantando canções folclóricas, que no Brasil mais parecem ficcionais. Pois as regionalidades pasteurizadas brasileiras soavam falsas o tempo todo, mas combinavam com os corais. Eu mirando a cena do segundo andar do bar onde eu estava. No fim, um músico entoava Piazzolla no acordeom. E eu gritava “Zita! Zita!” E ele a executou com luxúria, olhando pra mim. Era sempre assim que tudo começava em minha vida. Tal qual a gênese da minha existência. Transgressão, luxúria, pecado, prazer. E um pouquinho de dor. Só pra rebater.
A conversa em minha mesa estava interessante, mas volta e meia eu me lembrava de minha avó. Ela gostaria de ter assistido comigo as crianças cantando no HSBC. Mas se isso tivesse ocorrido, talvez eu não gostasse. Era preciso que ela estivesse morta para que eu pudesse estar aqui. Eu sempre soube disso. Eu nunca me senti mal. Mas a falta de ternura da nossa relação era fato irrefutável. Eu tenho ternura pela pessoa que sou e que lembra. E é lembrando que eu posso amar a família. Nunca na hora. Sempre lembrando.
Talvez fosse pelo difícil hábito de exercer meu auto-controle. De engolir sapos, de me adaptar aos outros. Ou mesmo de chorar diante de verdades insolúveis como a morte, como a falta, como a carência, como a gratidão. Era sempre um sabor salgado. Nunca doce como as sobremesas cheias de nata do Natal. Talvez por isso a minha infância não tenha o sabor de doce que as outras infâncias tiveram. Era sempre um sabor de lágrima. Sal do mar que arde os olhos. Era sempre um sabor de carne e sangue com ou sem tempero. Sal grosso. Fogo e carvão. Corpo e sangue de Cristo. Aquele que morreu para nos salvar. E, vejam só. Era justamente para celebrar o nascimento daquele que salva pelo fim, morte e dor, que estávamos ali todos expiando suas culpas, dando sorrisos cordiais com ou sem intenção de nos salvar. Eu fui sempre salva pelo gongo. Salva por todos. Não sei se essa sorte toda, tudo que me vem na hora que preciso, é obra dos deuses, da minha mente, da minha vontade ou se é realmente das decisões das pessoas ao meu redor. Família, amigos próximos, colaboradores de trabalho e o meu amor. Mas as pessoas gostam de me deixar bem claro o bem que fazem a mim. E eu não sei a melhor maneira de viver isso. Poderia ser de modo apenas táctil. Com os meus dedos em cabelos curtos. Poderia ser de maneira verbal, com elogios, idéias, diálogos e os brilhantes momentos de epifania coletiva, construídos por todos, mas comandados por mim, apenas pelo fato de que eu sou o narrador onisciente. Poderia ser apenas um telefonema. Poderia ser no grande dilema que é dizer ‘eu te amo’. Poderia ser na atitude de passar um pano com veja multiuso em toda mágoa e rancor das erosões daquele quintal perdido. Onde orquídeas nasciam nas ameixeiras. Onde pássaros nasciam nas ameixeiras. Onde as neuroses individuais almoçavam coletivamente sob a sombra da ameixeiras. Mas como jogar fora esses retratos? Como queimar esses poemas anuais? Como tirar de si o próprio sangue numa doação, renovação do próprio pulsar vermelho?
Seria fácil encaixotar tudo? Alugar a casa? Vender a casa? Partilhar os bens entre as herdeiras que nunca foram e sempre quiseram ser? Eu nunca quis e sempre fui, desde o primeiro dia da minha vida, herdeira de todas as qualidades, de todos os defeitos de todos eles, do mais velho ao mais novo, do mais próximo ao mais distante.
Era a primeira vez que eu não tinha obrigação nenhuma de passar o Natal com ninguém. O que eu queria mesmo era estar já no futuro com o Natal que eu preparasse. Guardanapos vermelhos e verdes. Pratos brancos. Copos descartáveis para as crianças. Árvore de Natal gigantesca com os presentes para todos, não só para as crianças. Para todos. Para que os adultos não precisassem ensaiar, montar o cenário e contracenar mediados pelas crianças. As crianças que fomos eram por demais responsáveis por tudo que ocorria à nossa volta. Só estavam as duas famílias reunidas porque nós éramos a intersecção delas. Os adultos é que tinham que mostrar o que era ser feliz e ser humano. Não com os nós na garganta, mas com aquela mania escrachada de dizer Peguem mais lá na geladeira... Já acabou a cerveja? Querido.. poe as crianças no carro que vamos buscar mais! ... Olhem só como se parece comigo... Lembra quando eles nasceram? ... Obrigada por mais um ano... Eu também te amo... Ano que vem vamos viajar para onde?
Eu queria mesmo era viajar. Talvez eu quisesse estar sozinha e acompanhada. Eu queria me afastar do tempo e da preguiça. Eu queria jogar fora muita coisa. Coisa que já estou fazendo. Eu queria presentear o amor com tudo aquilo que me custa pouco. Como uma bebida, um lençol e um beijo. Com minhas palavras, o meu carinho, o meu desejo.
Mas não é Natal o que eu quero. O que eu quero é poder reconstruir o que eu sou. O que eu quero é acreditar de novo no amor. O que eu quero é semear as sementes da vida. O que eu quero é um papel em branco onde eu possa escrever o que eu sei. Sem soberba, gula, preguiça, luxúria, avareza, ira. Eu quero o Ano Novo de novo.