Sunday, April 22, 2007

beijo de carangueijo e boomerang blues - parte I (em construção)

Beijo de carangueijo e o Blues do Boomerang

Era uma tarde com promessa de findar um dia produtivo. Eu parecia engrenada na máquina do mundo real. Acordando cedo todos os dias, cozinhando para um convidado especial. Comprando flores para alegrar as madeiras escuras da sala. Marcando encontros pra que a saudade surtisse efeitos de desejo e cumplicidade.

Ele reparava em cada detalhe, mas não falava nada. De modo que eu bebia com prazer um ou outro elogio que lhe saltava ornamentalmente pela boca. Tenho certeza que aquele foi mastigado e degustado junto com a comida. E depois de um "hum" disse que eu cozinhava muito bem.

Não sei se era o plano dele, mas ele estava dia a dia me tornando mais cotidiana. As coisas transcorriam calmamente até que naquele dia...

Logo depois do almoço inventei de tomar café. Saímos do restaurante, fiz questão de pagar, e dei para ele segurar a minha garrafa de coca light. Logo eu iria para a aula do mestrado, e de tão monótonas eu precisava de cafeína para não dormir e talvez pegar duas ou três frases a cada hora e fazer uma anotação numa folha de xerox dos textos que eu não tinha lido e que com certeza não reabriria para reaver minha anotação. Puro desinteresse. Foi então que um mendigo pediu a coca. Eu marchava em minha realeza e apenas dois passos depois ordenei-lhe que desse a coca para o mendigo.

Ele silenciou - e isso era sinal de reflexão austera sobre mim - eu me fazia de desentendida, mas mergulhava aflita nos seus pensamentos. Mas seu pensamento era veloz e logo ele já havia desferido uma piadinha para que o silêncio momentâneo não me fizesse também refletir sobre ele. Ele tomava atalhos me descobrindo as minhas senhas como um invasor invisível, mas eu é que deixava a guarda aberta, porém nem sempre eu sabia o que ele sabia de mim. E assim prosseguíamos falando prolixamente numa velocidade esfuziante.

Era isso que nos deixava entorpecidos um do outro. E fazia das nossas pausas entre as palavras momentos solenes de revelação, adoração e entrega. Mas hoje a tarde toda que perdi me nega. Eu não deveria ter deixado nas suas mãos. Mas é bom que haja uma pausa entre as canções.

Ele estava lendo o jornal, e assim que me sentei à mesa do café, comecei a dissertar
sobre o assunto resgatando reminiscências. Ele abriu na página dos horóscopos, pedi pra ele ler pra mim - leitura horrível - tomei-lhe o jornal das mãos e comecei a ler. Li o dele e ele pediu "traduza. não entendi nada". Claro que eu
faria algumas inserções psicológicas e daria minha própria interpretação. E era isso que ele queria - não sei se ele sabia.

Enquanto eu lia ele podia pensar rapidamente numa resposta, já que ficaria livre das minhas intrusões telepáticas. Ao final da minha leitura, depois de apenas dois segundos de pausa ele disse "será que hoje eu vou ter uma revelação?". Instantaneamente me protegi dissertando sobre a lua em touro e blá blá blá.

Ele dissertava sobre o papo de parar de fumar. Eu dissertava sobre o porquê de eu não parar, e generalizava sobre os motivos de fumar ou não fumar. Aí eu deixei escapar uma borboleta do meu estômago, negra e azul marinho... E ele deixou escapar um escorpião que o estava ferroando vermelho como o caranguejo do seu beijo...

Mas já era hora de ele ir... Então me levantei e a essa hora eu já estava completamente envolvida e como era bom sentir aquele calor, aquele carinho... e o caranguejo do seu beijo....

Fui linda livre leve e solta aos meus afazeres. Xerox para ler, etc.
A aula estava incrivelmente interessante. E depois fui executar minha listinha de coisas a fazer.

Comecei a arrumar a bagunça, confesso que senti prazer ao fazer isso. Gosto de manter a bagunça, porque ela narra minhas histórias. Está tudo ali é só ler.
E exatamente por esse motivo, em alguns momentos eu entrava em estado catatônico lembrando, ou simplesmente meditando, alcançando o vazio, descansando a minha mente que quase nunca pára de pensar.
Lembrei que eu tinha televisão e fui assistir a novela. Mas o casal que eu queria ver já tinha se separado. E a música da Maria Bethânia não tocou. O que tocou foi o meu telefone. Pensei... pode ser ele... ou os outros... mas não. Era um outro que não era os outros. Levei um soco na boca do estômago ao ouvir seu nome. Eu nem lembrava mais, mas daí lembrei. Como agir? Naturalmente... Ele estava em crise e estava urgente. Eu não tinha pressa, pensei que ele havia ligado só pra dizer oi. Ele estava precisando de mim e eu precisava mostrar pra ele que não precisava mais dele.

Parecia um filme. Eu não estava ansiosa. Parecia que eu já tinha decorado meu papel. Depois de tanto tempo sendo uma mulher com outro nome, aprendi a deixar escapar de mim somente o que eu quero, somente o que me interessa para causar o efeito desejado. E o que eu queria era dar a ele a minha indulgência - a forma mais polida de desprezar alguém.

Ele jogou alguns verdes, to indo pegar filme, to passando na tua casa, to sem dinheiro pra sair, tem certeza que quer ir lá?

Ele disse que queria falar... mas não conseguiu... então peguei a deixa e destilei todo o meu mel - o único alimento que se não deteriora. Fui doce e tácita como uma assistente social socialista, informando ao andarilho maltrapilho como sobreviver. Ele rememorou algumas frases minhas sobre a personalidade dele, e admitiu que eu estava certa. Venci a batalha. Xeque-mate. Cheque e mate.

Ele queria o abraço e o beijo que eu havia prometido dar quando ele voltasse. Aí me lembrei da pergunta dele antes de partir (como saber agora o que era mentira ou não?) "Será que quando eu voltar você ainda vai me amar?" e eu... como reflexo involuntário "claro!"

Não fui eu quem matou o meu amor por você. Foi você quem o fez, e lentamente numa tortura fria com requintes de crueldade. Não teve ética pra me receitar nenhum analgésico. E depois veio chorando de dor, uma dor maior que a minha e muito mais patética. Criança irresponsável... Orgulho ferido.

Agora eu vejo aquele beijo era mesmo o fim... Ele triste (e como saber agora o que era mentira ou não?) me beijando com calor e um até logo que se perdeu nas noites em que ele se perdia.

E o até logo foi daquele beijo até esse dia. Na saída, ele "vamos?" "não. eu vou ficar." "sozinha?" "eu sempre venho aqui sozinha e fico ali no balcão." Nas despedidas ele sempre pedia para eu o levar até a porta. Naquele dia eu nem levantei pra dizer adeus. A palavra adeus nem se manifestou. O adeus foi assim...

Ele me abraçou do modo que ele queria que eu o tivesse abraçado, como eu havia prometido. Mas eu só consegui firmar minhas mãos por poucos instantes, e dei-lhe tapinhas nas costas achando que ele ia me soltar também. Mas ele se demorou mais um pouco. Me desejou felicidade. E partiu rumo ao seu rumo perdido, caminhando na odiada cidade que o faz perceber que tudo o que fez em sua vida não era verdade.

Coisas da vida.