Monday, November 06, 2006

Carta para uma Puta Poeta

Ponta Grossa, 21 de junho de 2002

Cara amiga Puta Poeta,

Sabe, amiga... Nunca vou ser normal. Parece que eu sou uma pessoa ativa, decidida, determinada. Mas não consigo me livrar das dependências, de meus vícios. Como no amor, na paixão. Se alguém me toma com propriedade, comporto-me como tal. Eu faço tudo que está ao meu alcance para agradar, cuidar, fazer feliz e não perder quem amo. Vejo que já tenho fãs. Não porque sou bonita, dieta, strech, ginástica e maquiagem. Você viu? Ando sempre tentando passar despercebida, e quando uso a maquiagem para realçar minha beleza, as pessoas me notam. As pessoas querem que usemos máscaras para que fiquemos mais perto do que eles esperam de nós. Por isso bebo. Para fugir das máscaras que eu própria quis vestir para ficar mais perto do que eu queria ser. Estou aqui fazendo papel de MARIA novamente. Sofrendo pelos outros, me doando sem querer nada em troca. Tudo o que mais quero, o que mais desejo é o que possa vir de mim mesma. Quero me libertar, flutuar, gozar, rir até cair. Rir e gozar até chorar. Meus olhos são sensíveis, míopes e sensíveis. Enxergo o mundo todo desfocado porque enxergo demais. Meus olhos são muito grandes para ver o superficial. Então uso meus óculos para ver se tento me encaixar nesse mundo, mas quantas vezes eu já não quebrei as essas lentes, quantas vezes quis escondê-las por vergonha. Está na cara, diante de minha face que eu não sou igual a todos que vêem o mundo perfeitamente. E você sabe que o perfeito é aquilo que não temos. Como aquele meu amor que nunca tive e ainda fica aqui tentando ser lindo. Era tão puro que me dá raiva. Foi tão auto-suficiente que se torna incompreensível quando ponho meus óculos para vê-lo. Só espero que a maneira como eu toco os sentimentos seja como miopia: progressiva.

Sentimentos,

Sua amiga Puta Poeta

Saturday, November 04, 2006

Cleópatra entra na sala...

Cleópatra entra na sala...
Cleópatra diz para todos:
Oi!
Júlio César flerta com Cleópatra: Veio ao meu encontro, Cleópatra?
Pimpolho fala para Cleópatra: O Júlio César é um corno!
Cleópatra responde todos: Obrigada por me avisar, mas na verdade estava querendo fugir de Júlio Césares e de Marco Antônios. Mas e tem jeito?
Tiazinha pergunta para Cleópatra: Está magoada com aqueles idos anos do Império Romano?
Cleópatra responde para Tiazinha: Queria começar vida nova. Sabe que minha fama não é das muito boas lá no Egito...
Pimpolho ri de Tiazinha: Não faz mal, porque a fama da Tiazinha também não é muito boa aqui nessa sala.
Júlio César ri de Pimpolho: Não esquente, Cleópatra! Nem vc, nem a Tiazinha têm que se preocupar com fama nenhuma!
Pimpolho responde para Júlio César: É... só para a gente esquecer a tua fama de corno!
Júlio César grita com Pimpolho: CALA A BOCA!
Júlio César flerta com Cleópatra: MAS, vc ia dizendo que queria fugir... Deu um salto no tempo! Estamos em 1999 quase no século 21!!! Não se sente desconfortável?
Cleópatra responde para Júlio César: Não. As coisas não mudaram muito. Os papos são os mesmos, a única diferença é que não vejo sua cara, nem sua letra.
Júlio César pergunta para Cleópatra: De que computador vc fala... digo. De onde teclas?
Cleópatra responde para Júlio César: São Paulo.
Júlio César ri para Cleópatra: Então deve estar molhada. Será que amanhã vai ter outra enchente aí?
Cleópatra fala para Júlio César: Não brinque. Isso é sério. Muitas pessoas vêm suas vidas se desgraçando.
Júlio César se desculpa com Cleópatra: Seria cômico se não fosse trágico. Me desculpe a insensibilidade.
Cleópatra pergunta para Júlio César: Pois é. E vc? De onde teclas?
Falo de Salvador. E aqui perto falta muita água.
Cleópatra ri para Júlio César: Vai ver que erraram de chuva..
Júlio César ri para Cleópatra: É vai ver que é...
Cleópatra pergunta para Júlio César: Por que demorou tanto pra escrever? Está falando com outra pessoa no reservado?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Estou agora com vc.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Tô falando que as coisas não mudaram nada. Lá vou eu com minhas neuras, mas... Vc me parece distante desde a chuva.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Me desculpe. Por que Cleópatra?
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Por que o quê?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Por que o nome Cleópatra?
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Não sei. Pergunte à minha mãe.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Foi sua mãe que lhe pôs o pseudônimo?
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Não, meu nome é Cleópatra, mesmo. Uma vez eu li que Cleópatra significa: a glória do teu pai, mas meu pai não é lá muito glorioso.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Não estou acreditando. Olha, até agora não disse nenhuma mentira. Acho que o neurótico agora sou eu. Mas não quero que vc minta. Estou gostando de teclar com vc.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Que bom que vc não mentiu, porque eu também não estou mentindo. Se vc tem uma caneta por aí, anota meu RG. Vc vai ver como eu existo. E como é meu nome.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Pois espere um pouco que vou buscar a caneta. Enquanto isso delicie-se: Meu nome é Júlio César também. Não gosto de mentir na Internet, porque as pessoas geralmente acham que é mentira, mas a vida real é mais fantástica do que Marina Colassanti.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Já que vc vai demorar, quero mandar mais coisas nessa fala. Quero dizer que entrei nessa sala porque comecei a achar meu nome ridículo. E estava pensando justamente nisso: de que todos iam achar que era um pseudônimo, mas estava afim de conhecer outras histórias, nem que fossem mentiras. É bem verdade que estava fugindo de Júlio César e Marco Antônio. Estou num desses “recomeços” que dizem que a vida tem. Estou sozinha.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Olha, coloquei no som a música sozinho, que o Caetano está cantando agora. Mas antes era sozinha de sandra de sá. E acho assim que nessa música tem uma coisa que é o de amar a tal pessoa com quem vc está, mas ao mesmo tempo tem a possibilidade da outra pessoa, que pra mim parece bem forte. Pois ela fala que me ama, mas é da boca pra fora. E se eu me interessar por alguém? E se esse alguém de repente me ganha? Aí no silêncio dessa noite eu já começo a imaginar nós dois. EU & VC, Cleópatra. Se vc existe mesmo, se vai me dar seu RG para provar, eu lhe peço que fique essa noite comigo. Estou sozinho também.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Olha, já que estamos sendo sinceros quero lhe dizer uma coisa: também tenho uma pessoa no meu coração, mas ele já não está comigo, ele foi embora, foi por isso que entrei nessa sala: pra fugir. Vejo que vc também está fugindo de alguma mulher. E digo mais: Acho que vc está realmente muito “solto” Por que vc me deixa tão solto? Acho que essa tal moça te deixa bem solto, ela está solta, vo6 estão negando um compromisso. Vc reclama dela a mesma coisa que vc faz com ela. Como é o nome dela?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: O nome dela é Maria Elisa. Um nome lindo e eu nem sabia que era assim. Todos a chamavam de Elisa, e quando eu soube que era Maria Elisa, pensei que talvez ela fosse ainda mais bela do que os outros falam, e do que eu conheço. Como o nome dela. Nossa! Que coisa bonita falei agora. Acho que as coisas são muito bonitas na hora em que acontecem. E eu nem sabia que o que senti naquela hora era isso. Agora é que estou falando. E achei tão bonito falar isso, que me assustei. E de novo sinto as mesmas coisas que senti por ela naquele começo.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Desculpe a pergunta, mas ela te traiu?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Não sei. Mas ela traiu nosso amor, nossa confiança mútua. Ela ficou distante demais e eu não suporto ver ela se afastando de mim. Por isso acho que me empolguei com vc. Acho que se ela tinha um problema, deveria me contar...
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Essa sua Capitu... Sabe o que eu acho? Acho que a Capitu fez a mesma coisa que Maria Elisa. Acho que ela foi se distanciando do Bentinho e ele sentiu isso. Acho que ela queria ter um filho, e Bentinho parecia que não podia... E num deslize, numa distração. Ela e o amigo... então quando a criança nasceu, acho que ela se esqueceu de tudo, mas Bentinho é que começaria a perceber e a ter ciúmes do filho. Vc não está sendo Dom Casmurro demais? Se vc gosta dela, por que faz isso com vc mesmo?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: O que estou fazendo? Só estou tentando encontrar alguém pra mim.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Acho que vc se preocupa demais em achar a tal pessoa e não quer enxergar que essa pessoa pode ser a tal Elisa.
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Maria Elisa. Sabe que ela implicava com o nome? Achava nome de velha. E eu adorava chamá-la Maria Elisa. Demorou para ela se acostumar, mas ela acabou gostando. Por que será que as coisas não dão certo?
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Começou uma tempestade aqui em sampa. Estou com medo. Estou com medo de que acabe o mundo. Onde será que nossas almas irão bailar?
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: A minha com Maria Elisa... se ela quiser... Sabe que quando estamos juntos parece que ela me ama, mas... se nos separamos por muito tempo parece que minha cabeça se enche de dúvidas.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Espero que vc não se perca nessas suas dúvidas. O cara que me deixou também tinha umas minhocas na cabeça, mas aconteceram muitas coisas entre nós dois. Digo, muitas barreiras entre nós dois. Coisas irreversíveis, tanto quanto o sentimento. Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: Acho que meu sentimento também é irreversível, mas não quero ficar sozinho.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: Eu também não.
Júlio César murmura reservadamente para Cleópatra: Poucas palavras...
Cleópatra murmura para Júlio César: Muitos tambéns.
Júlio César suspira para Cleópatra: Pleno acordo.
Cleópatra suspira para Júlio César: Como se beija pela internet?
Júlio César responde para Cleópatra: Acho que se vc ficar em silêncio e fechar os olhos, o beijo vem.
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: ...
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: ...
Cleópatra fala reservadamente com Júlio César: ...
Júlio César fala reservadamente com Cleópatra: ...
Cleópatra responde para Júlio César:
Vc não vai ficar sozinho. RG 8 567 789 0 . E-mail: Cleópatra@ig.com.br
Cleópatra sai da sala...

Copo blue

Acabei de quebrar um copo. Copo de vodka. E os cacos que rolaram e grudaram no chão úmido são azuis. Estava escuro e nem vi a cor. E ao andar pisei neles. Acendi a luz e estavam lá os lindos cacos azuis. Pensei em limpar tudo rapidamente, mas eram tão bonitos os azuis e seus tons, semitons de um blues. Qualquer coisa como um BLUES... de azul e tristeza. Qualquer coisa como uma viagem que mal começara... Risadas. Música alta e gente mais alta ainda. Todos bebendo em copos coloridos e apenas um deles era azul. Lembro-me daquele copo e da mão que o segurava. Mão de mulher. Era uma mão como aquelas rápidas e ágeis com dedos compridos e unhas afiadas. Aquela mão que adora se enroscar nos pêlos do peito de um homem. Ou deslizar seus dedos no pele a pele. Mãos que aceitam tudo e que gostam. Mãos que nos fazem gozar. Mãos que são felizes por serem mãos. A mão do copo era a mão esquerda. Ela era canhota. Sim, era. E borrava tudo quando escrevia com Parker. Era para ela o telefonema. E foi dela o papel que achei no dia seguinte. Corações e flechas, gotas e mais gotas de sangue e o nome dela, que não me lembro. O telefone de alguém que não me lembro. Era um celular. Com prefixo nove. No ano de noventa e nove quando os celulares começaram a se popularizar. No início das privatizações. Era o telefone de alguém especial ou casual. Pra ela era tudo a mesma coisa... Pra mão. Foram aquelas mãos que pegaram um CD de Blues e apertaram aqueles botõezinhos no visor, aparecendo os números. 1,2,3,4,5. Número cinco. A música entrou goela abaixo dos que comiam e bebiam e fumavam. O baixo estava estagnando a melodia. O baixo mexia com as partes de baixo. E, malmente, alguns começaram a dançar e ela balançava aquelas mãos e o copo azul. E o ritmo frenético de seu corpo era embalado pelas mãos. Ah! mil cacos não cobririam aquela mão de azul. Mil cacos azuis no chão não cobririam o azul de algumas lembranças. De alguns relances dos lances curtidos numa noite de Blues. . Ela era Blues num copo blue. Ela era azul num corpo blues. Copo louco que percorria o corpo dela. Será que ela sabia que estava na minha casa? Bom... o fato é que ela ia ser minha aquela noite. E ela sabia porque o corpo dela vinha na minha direção. O Blues trazia ela pra mim. E ninguém percebeu. Só eu. Você sabe o que esperar de uma noite assim. Será que não existe lugar onde se possa prolongar o perfeito? Acho que essa é a imperfeição dos momentos ilesos de sentimentos. Acho que essa é a grande piada da vida. E acho que é por isso que os copos se quebram. E é por isso que os cacos grudam no meu pé. Eles ferem. Eles mancham. Mas ainda tenho o número do telefone celular...

iNSÓLITA eSTRELA

eLA SENTIA PRAZER SOZINHA. dIZIA QUE SENTIA PRAZER SOZINHA. e ACHO QUE SENTIA. eLA ERA DEMAIS PARA UM HOMEM SÓ. a NÃO SER QUE O HOMEM FOSSE COMO ELA. mAS É DIFÍCIL, MUITO DIFÍCIL ENCONTRAR HOMENS ASSIM. how bizarre EU DIZER QUE É DIFÍCIL ENCONTRAR UM HOMEM ASSIM, MAS NÃO SEI, SE ELA FOSSE UM HOMEM, NÃO SEI SE EU NÃO EXPERIMENTARIA O HOMOSSEXUALISMO.

iNSÓLITA MANEIRA DE AGIR E DE PENSAR ELA ME ENSINOU. eLA QUERIA QUE EU PENSASSE NELA. qUERIA TRANSCENDER EM MIM. eRA DELICIOSO ENTRAR NOS DESVARIOS DELA. pENA QUE ELA NÃO ENTRAVA NOS DESVARIOS DE NINGUÉM. nEM NOS MEUS. mAS TALVEZ ENTRASSE NOS DELE. dAQUELE HOMEM.

“sinto muito.”
eLA VIVIA SE DESCULPANDO. e COMO DIZER QUE NÃO? cOMO DIZER A ELA QUE EU NÃO DESCULPAVA, QUE ELA era má comigo e com todos os outros, exceto que eles se encaixassem em seus caprichos. fOI DIFÍCIL, MAS DESCOBRI. dEPOIS DE MUITO TEMPO NAQUELA LOUCURA DE QUERER E FICAR E FUGIR. sEM QUERER, FUI DESCOBRINDO OS PONTOS FRACOS DELA. e ELA TINHA MUITOS. eLA ERA HUMANA.
aPESAR DE PARECER UMA CRIATURA EXTRAVAGANTE, ELA ERA MUITO SIMPLES DE DESVENDAR. aPESAR DAS VARIAÇÕES, O PROBLEMA QUE ELA TINHA É UM DOS MAIS SIMPLES DE SE VER POR AÍ. cOMO QUALQUER OUTRA PESSOA, ELA TINHA SENTIMENTOS. uMA VEZ AMOU, E, PARA SE CURAR, SE APAIXONAVA.
pENA DE MIM ELA TINHA, GOSTAVA DE EXERCER SEU PODER SOBRE MIM. sABIA QUE AQUILO NÃO DURARIA MUITO E TALVEZ POR ISSO FIZESSE QUESTÃO DE FERIR E CURAR. eLA JÁ SOFREU MUITO. dÁ PRA VER POR ESSE SEU MODO DE AGIR. fERIR E CURAR. eLA SÓ QUERIA SE CURAR DAQUELE AMOR. rIDICULAMENTE EU SERIA APENAS MAIS UM ANALGÉSICO. mAS EU FUI AO FUNDO. vI COM MINHAS MÃOS AQUELE CORPO QUE CAMINHAVA A PASSOS SEGUROS, MAS QUE SE DESMANCHAVA NA HORA EM QUE PEDIA COLO, UM POUCO DE CARINHO E MUITA ATENÇÃO. e PEDIR ATENÇÃO JÁ FAZIA PARTE DA ALMA CHOROSA. a ALMA DELA VIVIA CHORANDO.
a PRIMEIRA VEZ QUE ME VI ENTRANDO POR UMA FRESTINHA DOS SEUS SENTIMENTOS, ME ASSUSTEI DEMAIS. mE ENCHARQUEI DE LÁGRIMAS QUE ELA NÃO ESCONDIA, CHORAVA-AS TODAS, POIS ACREDITAVA MUITO NA PRÓPRIA ALMA. tALVEZ FOSSE MESMO UM ERRO. uM ERRO QUE ELA ERRAVA, CONSCIENTE, FRACA DEMAIS PARA LUTAR CONTRA ELE. eLA DILACERAVA-SE NAS ONDAS DO MAR. sE SEUS OLHOS ARDIAM DEMAIS, ELA SORRIA, GARGALHAVA.
pOR QUE EU ACEITAVA AQUELA SITUAÇÃO? tALVEZ EU QUISESSE PROVAR A MIM MESMO QUE EU PODIA SUPERAR AQUILO. nO FUNDO, EU ACREDITAVA QUE ISSO DE CONHECER ESSA MULHER SERIA BOM PARA MIM. cADA HISTÓRIA QUE ELA ME CONTAVA, CADA NEUROSE QUE ELA DEFLAGRAVA. mE SENTIA UM PSICANALISTA. àS VEZES ELA ADMITIA TUDO O QUE ERA ERRADO NELA, MAS NÃO DURAVA MUITO.
eLA ERA MUITO SOZINHA. sÓ QUE A CULPA NÃO ERA MINHA COMO EU CHEGUEI A PENSAR QUE FOSSE QUANDO ENTREI NUMAS DE ACHAR QUE EU NÃO CONSEGUIA SATISFAZÊ-LA. eSSA POSSIBILIDADE FOI TOTALMENTE DESCARTADA NUM EPISÓDIO QUE FOI A PRIMEIRA EXPLOSÃO DELA PRA MIM. pEQUENA EXPLOSÃO SE COMPRADA ÀS OUTRAS, MAS POR TER SIDO A PRIMEIRA, ME MARCOU.
cHEGAMOS NO QUARTO DELA E ELA LIGOU O SOM. qUERIA FAZER AMOR AO SOM DE UM cd ANTIGO. uM cd QUE, JÁ NO COMEÇO, QUANDO A CONHECI, ELA TINHA ME CONTADO QUE ERA O cd dele. eU DISSE QUE NÃO. qUE ELA TINHA QUE FAZER AMOR COMIGO, E NÃO COM ELE. aQUELES OLHOS VERDES SE ENVENENARAM CONTRA MIM. e SEM PENA NENHUMA ME FERIRAM, ACOMPANHADOS DAS SEGUINTES PALAVRAS:
“ cala essa boca e deita de uma vez. para que você fica comigo? não é pra fazer sexo? não é para me exibir como objeto para os seus amigos? para dizer que você é o garanhão que consegue comer a gostosa difícil? pois então cala a boca e deita que o seu corpo não consegue resistir. e vai ser ao som desse CD sim, porque se não for assim eu não vou conseguir gozar!”
E ELA ME DOMINAVA TANTO QUE O QUE ELA BERROU NOS MEUS OUVIDOS FOI COMO SE ELA TIVESSE ME CHAMADO DE AMOR. aÍ ELA ME BEIJOU E EU ESQUECI TUDO. mEIA HORA DEPOIS O cd PAROU E A GENTE TINHA ACABADO DE TERMINAR. eU JÁ ESTAVA ME PREPARANDO PRA OUTRA, PORQUE ELA SEMPRE QUERIA MAIS. qUANDO EU ESTAVA EM ponto de bala ELA PAROU TUDO
“e você achando que um CD ia mudar alguma coisa.”
bATI NELA. fIZEMOS AMOR DE NOVO. dEPOIS DESSE DIA, ELA COMEÇOU A ME TRATAR MELHOR. vIU QUE EU ESTAVA ENTRANDO NA DELA MESMO. vIU QUE ESTAVA CONSEGUINDO ME DEIXAR LOUCO, COISA MAIS SEM SENTIDO.
"O sem sentido é sagrado pra mim."
nO COMEÇO É GOSTOSO VOCÊ ENCONTRAR UM NINFOMANÍACA DESSAS PELO SEU CAMINHO. vOCÊ SE SENTE NUMA CRÔNICA DE nELSON rODRIGUES. aCHA TUDO INTERESSANTE DEMAIS. eSSA VELHA ÂNSIA DE SEXO QUE A SOCIEDADE NOS IMPÕE. vOCÊ SE SENTE MAIS LIVRE E SE DESMANCHA DE PRAZER.
mAS ELA FOI UMA LIÇÃO PRA MIM. gOSTARIA MUITO DE TER ALCANÇADO AQUELA ESTRELA. tER AMADO AQUELA MULHER DA MANEIRA MAIS NOBRE POSSÍVEL, QUE APESAR DE TUDO O CORAÇÃO DELA ERA NOBRE DEMAIS. sÓ QUE NÃO ERA MEU. sE PARECE ÓBVIO QUE NOS SEPARAMOS PORQUE EU NÃO AGÜENTAVA VER QUE ELA AMAVA OUTRO, É ILUSÓRIO.
eU ME AFASTEI DELA. mE AFASTEI PORQUE ENCONTREI UMA FADA EM MINHA VIDA. dESSAS QUE FAZ COM QUE TUDO FAÇA SENTIDO. qUE TRAZ MÁGICA NA VIDA DA GENTE. e ENTÃO, HOJE QUE VIVO ESSE AMOR, TENHO MEDO DE PERDÊ-LO. eNTENDO AGORA O QUE ELA SENTIA. e MORRO DE MEDO DE FICAR COMO ELA, SE UM DIA MINHA FADA FOR EMBORA. tENHO MEDO DE VIVER UMA VIDA INSÓLITA, POIS AGORA SEI O QUE É AMAR AO EXTREMO.
eSTRELA INSÓLITA, TORÇO POR VOCÊ. qUANDO VEJO ALGUÉM FAZENDO ARTE, CANTANDO, DANÇANDO, ESCREVENDO, PINTANDO, INTERPRETANDO. tUDO O QUE VOCÊ FAZIA. tUDO AQUILO QUE ATRAI QUALQUER HOMEM ATÉ VOCÊ. ACHO QUE A VIDA FOI RUIM PRA VOCÊ. MAS VOCÊ CONTINUA VIVENDO. lEMBRO-ME E TORÇO POR VOCÊ.
“todas as transas, conquistas, casos e paixões que eu tenho. tudo isso que eu faço. tudo que eu canto. todo o movimento que eu danço. toda personagem que interpreto, ou que crio em linhas de uma história. tudo o que remete à arte é a minha busca pela obra-prima. só faço o que vale a pena. o que sei que vai dar certo. que vai virar sucesso. e tudo isso voa para sustentar uma pessoa. e quando eu tenho sucesso, por tudo ser baseado nele, no nosso amor, eu respiro um pedacinho de esperança de um dia conseguir ter ele de volta. não só para mim. pra nós.”

MEDO DO ESCURO

O piano desafinado. A poeira que ainda resta sobre ele. E ela toca. O amor lhe dói agudo mais uma vez. E ela sabe que é assim. As mãos não conseguem fazer soar no piano a melodia que o coração sente, mas os ouvidos fingem escutar música agradável. Sozinha no escuro ela pensa “Eu vou passar bem rápido pelo escuro assim ninguém vai poder me pegar. Nem o diabo, nem nenhum morto.” - Por que você está correndo, menina? Vergonha de seu medo. Alguém algum dia lhe contou que todo mundo tem medo? A Menina tem medo. Quando briga tem medo. Quando perde o controle tem medo. E chora lágrimas de quem não entende nada. Por que os pais eram separados dela? Por que ela tinha que aceitar ordens de alguém que não é nem seu pai, nem sua mãe? Ela não quer que eles voltem a se casar. Eles só podiam não estar separados dela. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro num quadro acima da cama. A Menina fazia catequese e a “tia” disse que ter fé era dar um passo no escuro. “Eu tenho medo do escuro! Eu tenho medo do escuro!” A “tia” disse que a gente tem que crer em nosso Senhor Jesus Cristo para nossa salvação. A santíssima Trindade. “Eu meu pai e minha mãe? Como pode ter três deuses em um?” A “tia” disse que a gente tem que ter fé, que fé é o passo no escuro. “eu tenho medo do escuro! Eu tenho medo do escuro! Eu não tenho fé???!!” Mas e se ela chorar e rezar o terço cor-de-rosa que a professora de piano lhe deu, será que pode pelo menos dormir tranqüila? O terço é lindo! As pedras têm cores de rosa que são muitos tons refletindo outras cores na luz – e não no escuro. Não são como o terço feio da Avó. Terço azul de plástico. Azul de bugiganga de plástico. Plástico azul do espremedor de laranja que também é velho e sujo. A professora de piano, que era freira, foi quem deu a ela o terço. A Irmã gostava da Menina. Da criança alegre e inteligente que ela era. Os outros alunos reclamavam que a Irmã era brava, mas com a Menina era só de vez em quando, quando ela não tinha estudado nada mesmo. E, mesmo quando ela fica brava, ela não achava que a Irmã era tão brava assim. A Avó era bem mais quando não queria estudar piano. E a Irmã sempre a deixa tocar um monte de músicas no final do ano. Na primeira audição de piano de sua vida a Menina tocou “Férias na Espanha”. A Irmã lhe deu uma música que considerava de nível mais adiantado que o dela. Falou que se não desse pra decorar, tudo bem. Chegando em casa, a Menina contou pra Avó, feliz da vida. E a Avó disse “como se não der pra decorar tudo bem? Você é capaz! Você decora! Vai mostrar pra todo mundo que você decora!”. A Avó não entrou no universo da Menina. Não percebeu que o grande acontecimento era que a professora a elogiava, e que a Menina estava feliz por isso. A Avó pulou essa etapa, não esperou que crescesse nela a vontade de decorar. Tão logo tocou a primeira vez a música, a vó já tomava a partitura da Menina e forçava-a a lembrar da música. Não vinha dela própria as vontades. De tanto chorar, tanto chorar, não entendia o que estava acontecendo. Chorava, apertava bem o olho pra sair a lágrima e parar de doer a cabeça e sair o azedo de dentro dela. De olhos fechados a única coisa que existia era a sua dor, a sua solidão. Quando abriu o olho estava lá sentada no banco do piano com as pernas balançando, de vestido branco, cabelo channel, e uma tiara de florzinha. Tocando tudo de cor. Junto às lembranças, analisa: “Minha vó sentiu orgulho, mas eu não estava mais feliz por isso.” No dia de sua formatura do curso piano sentia um choro preso na garganta. Era dia de festa e seu coração estava derrotado. A Menina gostava de um rapaz que não estava ali. Estavam a Avó e o Avô exibindo um orgulho bobo. A Amiga, que também se formava, estava chorando porque o pai dela não ia. “O meu também não! Nem minha mãe.” Mas a Amiga estava chorando porque os pais tinham brigado e pra a Menina era até fácil de entender uma briga, de aceitar, de fazer a Amiga se sentir melhor... a Amiga chorava porque a família poderia ser desfeita. A Menina chorava por nunca ter tido a família perfeita.

Era um domingo de manhã. A Menina sai pra comprar jornal com sua irmã Caçula. A Caçula pergunta ao olhar para um homem, uma mulher e um bebê no carrinho: - A família deles é normal, né? - É isso o que você quer? Uma família normal? Então saia dessa família, que é menos um pra encher o saco! Como pôde responder a Caçula assim? Um dia ela mesma já quis a mesma coisa. É que a Menina às vezes se esquece que a Caçula só agora tem as idades que ela já teve há muito tempo. Às vezes se esquece que a Caçula fora criada diferente dela e que só agora ela começa a se defrontar com o que sofreu quando era muito, muito pequena. A Menina é e sempre será a filha primogênita, a neta primogênita. A mais velha que tem que cuidar da Caçula e dos primos. Cuidar para que os pais das crianças não pirem a cabeça deles como a dela. Tão pirada, tão perdida. Com coragem até demais. Às vezes lembranças, culpas, medos...

Já não é mais tão Menina. Mas ela ainda tem medo do escuro. “Ele me levou pro escuro, eu tinha 15 anos”. A Nem-Tão-Menina estava fazendo o que sabia fazer e sentindo o que sabia sentir. Ela quis mais do que podia entender. E resolveu experimentar pra ver o que era. “Te levo prum lugar mais calmo. A casa de um amigo meu.” Ao ouvir isso pensou em cama macia e cheirosa. “Ele me comeu no quintal. Ele me levou pro escuro e não quis nem saber o que eu sabia fazer.” Mesmo assim às cegas, de um jeito de outro, foi do jeito dela. Então a Nem-Tão-Menina finalmente estava fazendo e era bom de sentir. Depois ele saiu de dentro dela, vestiram as roupas e ele a limpou da terra, do suor, e do sangue. E como era pouco sangue, nem reparou que era a primeira vez dela. Aí cada um foi prum lado. Foi tudo normal. Normal demais. Como se ela tivesse feito isso a vida inteira. Estar lá era muito fácil. Sentir o bom da coisa também foi fácil. Mas então já tinha acabado. E o caminho de volta era escuro. Depois desse dia, ela viu que o que fazia falta era outra coisa.

Naquela construção, a turma reunida e a Nem-Tão-Menina chegava junto com umas amigas. Tinham feito uma vaquinha pra comprar a droga. Estavam ali eles e o baseado. No escuro daquela construção a Nem-Tão-Menina sentia o cheiro que fazia tudo parecer mais parecido com o que era a vida dela. Sentados, deitados, esculachados no chão. O Veterano acendia, puxava e soltava, passava pro próximo à esquerda, depois dos piás, ela foi a primeira a pegar no cigarro. Só de pegar naquele baseadinho, ela já começava a sentir uma familiaridade. Fumaça sendo puxada pra dentro dela. “Prende, prende o máximo que você puder, senão não dá barato, depois solta!” A Nem-Tão-Menina pôde ver na cara do Veterano a expressão de desolação “Vocês que tão aí na primeira vez! Não entra nessa vida! Não entra nessa vida, não! Que você não consegue sair!” Foi tão sincero! Passou mais uma vez, mais outra. “Vamo embora?”. A Nem-Tão-Menina e as amigas saíram dali. Desceram a construção. E já no meio da rua, cada uma correu pra um lado, e uma terceira vomitava no chão. A Nem-Tão-Menina saiu correndo de volta pra festa da Igreja. Não se controlava, não controlava nada! As mãos tremiam, as caras, as vozes, as pessoas pareciam apontar pra ela. Era real? Era loucura? “Não venha sozinha pra casa!” Mas os passos iam sozinhos. Ela queria voltar pra casa. “Com quem eu vou voltar se não tenho ninguém?”. A casa era logo ali. Chegou em casa, a Avó perguntava: “Como foi de festa?” Não controlava nada, até sua própria casa parecia diferente, ainda tinha que falar com a Avó. Inventou qualquer coisa pra chorar de emoção, foi pro quarto, pro escuro, e ainda que fechasse os olhos, ainda que os deixasse abertos via sempre as mesmas coisas, imagens estranhas, desenhos, computação gráfica, ela poderia ser como um computador. Mas o vento falava com ela. Uma repetida palavra que não se lembra mais... Queria dormir, mas enfrentou as maluquices a noite toda, até que dormira e acordara no outro dia.

De novo no escuro do agora, é Mulher-Amarga. Mais um amor desfeito numa vida toda cheia de desilusões. Tudo o que sabia parece tão pequeno. Depois de dar passos no escuro não sabe mais o que esperar. Não sabe mais como o fazer. O medo do escuro a invade. Traz lembranças, traz a solidão. O medo do escuro persiste. Traz incertezas e um imenso vazio. Um piano desafinado chora junto com as lágrimas. As cordas, as mãos desacostumadas, as teclas amareladas. Tudo chora de medo do que virá. Medo do escuro final.

o universo continua mudo

Senhoras e senhores. O show vai começar. Você a conhece? Não, nunca ouvi falar. Uma cantora de cabaré. Nem isso. Esse pardieiro nem isso é. Nem tem essa magia, nem tem essa energia estranha. É apenas um moquifo enfestado de homens feios e desolados. Não existe gente. Mas... silêncio. Ela vai começar a cantar. A boca está borrada, o batom ralo escorre. O microfone apita, num palco improvisado ninguém percebe o cheiro de naftalina daquele vestido de lantejoulas. Lá em baixo todos fingem ser normal, todos querem diversão, todos querem esquecer. Ela também quer esquecer. Quer esquecer as mentiras da vida. E canta a canção mais triste, e chora enquanto canta. Não chora lágrimas, chora embrulhos no estômago. Ela encara todos os bêbados, ela observa a miséria deles. A falta de alma. E tem de admitir que é um deles. Um amor perdido... um erro cometido. Mas para que existe perdão? Mas para que existe pecado? Canta ainda mais melancólica quando se lembra de seu passado. Era uma manhã fria o último dia em que se encontraram. O nariz vermelho, o olho vermelho, era a fumaça, era o vício, era a tristeza. Ela um dia teve pureza no olhar. Ela um dia pensou que soubera amar. Mas amor não acontece por acaso. O amor não é para qualquer um. Da janela do puteiro com sol podia se ver a torre da Igreja, era noite, apenas, mas ela enxergava aquela torre. E todo dia via também a mesma cena, a festa de casamento. Todos os cumprimentos que recebeu o casal, e da janela do puteiro o olhar, ela assistia a tudo. Sem uma lágrima no olhar. Ele a ensinou a perder, ele a ensinou a parar de sentir. Ela não era puta antes. Era uma menina de família. Aquilo que insistiam em chamar de família. Mas era a rua, o perigo, a escuridão da noite, o álcool, a fantasia, o erro... tudo isso a fascinava. Nunca ninguém lhe explicara que o amor fazia perder. Fazia perder o controle, fazia perder os sentidos, fazia perder a noção do tempo. Três anos passam como uma semana santa, uma semana em que dois namorados se esperam pra se ver, passeios na praça, cinema aos domingos, presentes... ela queria mais do amor. Ela queria tudo. E exigia tanto daquele pobre amor novo. Ninguém lhe explicara que o amor espera, que o amor permanece, que o amor continua. Ninguém lhe deu a cor do choro mais sofrido, ninguém soube explicar seu choro colorido. A dor não era só dela. A dor era de todo o mundo. A dor era um mesmo caminho e ela o conhecia bem. Era fácil sofrer, era fácil chorar, era fácil se deixar levar... e os três anos passaram numa súplica, percorrendo todo a vida que se perdeu. As coisas continuam iguais até que turbulentos fatos mudam tudo. A inércia da moça sobre a cidade. Ela pode sentar e mandar em todos. Ela pode querer, ela pode tudo... mas não quer. O silêncio do universo, um diálogo que não ocorre. Que faço da vida? O que a vida fez de mim? As estradas todas se embaralham, as cidades por ela que se explodam. Onde está o sorriso inocente? Onde está a coragem de tudo? Ela pergunta pro imenso universo. E o universo continua mudo.

Mariposas

Cheguei no bar só porque não tinha nada o que fazer. Mais cerveja, mais pessoas com as quais eu convivia arbitrariamente. Eu não tinha aonde ir, com quem falar, ou estava com muita preguiça para encontrar uma solução para minha solidão. Era mais fácil no meio do caminho de ir pra casa simplesmente parar no bar. Eu não pensava. Apenas caminhava em direção às luzes amarelas como uma mariposa.
Ali, também, eu me sentia sozinha. A solidão faz parte de mim. Há momentos em que ela se configura necessária, produtiva ou contemplativa. Eu gosto de me recolher em um mundo que preparo pra mim. Com os cheiros que eu quero, incenso, comida sendo alquimicamente modificada. Cheiro de cremes e banhos. Cheiro de limpeza. Com as idéias que quero: uma canção, um livro, um desconhecido escrevendo diálogo comigo pelo computador. Fácil desconectar, fechar o livro ou virar a página. Fácil trocar de música. E era lá no bar que eu experimentava o desconforto de não poder desconectar as palavras já desconexas das outras mariposas em volta da luz amarela, toldo amarelo, mesas e cadeiras amarelas, líquido amarelo, os sorrisos amarelos. Pra poder me desligar dos amarelos, somente com muita cerveja até que as palavras dirigidas a um eu que eu não era acabassem por soterrar o meu eu invisível.
E então eu chegava em casa e sentia prazer ao entrar no meu caos particular. Eu era nada e tudo em meio aos entulhos dos meus prazeres materiais. Tudo que eu consumia com um dinheiro que me custou uma vida de sacrifícios para conseguir. As caixas dos eletroeletrônicos se transformavam em móveis: criado mudo, cômoda, mesa. As embalagens de bebidas e comidas. As roupas que já não serviam mais espalhadas por todos os lados, trazendo lembranças de um corpo que eu tive. O colchão no chão.
A primeira vez que o colchão foi ao chão, foi no dia da invasão. No lugar em que meu eu tornava-se visível ele entrou sem ser convidado. Senti incômodo com a presença de um estranho no meu mundo bagunçado e solitário. Naquele dia depois de tanto tempo eu era acordada por alguém. Ele interrompeu meu sono, meu descanso, meu descaso. Quando ele chegou, eu estava constrangida. Tentava me posicionar distante. Talvez reproduzindo as vozes das mariposas do bar. Acreditei que eu conseguiria me proteger daquela invasão cuspindo mariposas. Mas as canções...
Sim, as canções produziram em mim um efeito de desprendimento. Eu não enxergava as mariposas. E, pelo menos pra mim, meu eu invisível me preenchia e se manifestava através de beijos, melodias, harmonia... Era quase sintonia.
Não fosse a forte lembrança de um eu acorrentado a um sonho do passado, talvez eu tivesse enxergado aquele homem ao meu lado. Mas não. Aquele cheiro, aquelas canções, aquele beijo quente só podia despertar um eu que há muito tinha se perdido no passado. E então eu me reconheci, não tive medo, não tive dúvidas. Era o meu eu que amava que havia voltado. Mas ao olhar praquele homem de olhos fundos não consegui enxergá-lo. Eu amava o vazio. Eu amava ou era aquela sensação produzida pelas canções? E talvez saber que eu fora feita para amar o vazio e deixar esvair-me o amor pelos poros, desperdiçando-o para o nada, pois afinal eu não enxergava o homem e sim mais uma mariposa que também não conseguia me enxergar, me fez olhá-lo como se ele fosse meu espelho. E eu o vi e a mim. Éramos duas mariposas. Sorrisos amarelos. Quis voar para perto da luz amarela, do líquido amarelo. Era amarillo que estava em mim e eu precisava fugir.
Depois dele outros vieram sem serem invasores. Eu trazia as mariposas. Eu continuava fugindo. E comecei a percebê-lo também em movimento de fuga. Roubou meu líquido amarelo, e armado de sorrisos amarelos, procurou seguir na direção de outras mariposas. E eu contemplava aquele movimento ensaiando para ele um adeus.
Depois de algum tempo longe do bar amarelo, resolvi conhecer mais uma mariposa. E, inusitadamente, o homem estava lá. A princípio estava sob a forma de mariposa. Eu gostei do encontro inesperado. Quis acreditar que ele também ficou surpreso. E, não sei se por ser tocada pela força das palavras dele que ou eram verdadeiras ou eram apenas mariposas cuspidas, dessa vez eu o convidei.
Mas o meu lugar era outro. Talvez menos desordenado. Na nova casa havia meus objetos preferidos. Havia pedaços da minha história e o meu eu invisível estava estampado nas coisas ao meu redor. Mesmo sendo convidado, ele me invadiu, continuava cuspindo mariposas em mim. Mas meu novo lar não estava habituado a receber mariposas. Apenas acolhia aqueles que me conheciam e me enxergavam.
Ele entrou sem me enxergar. Ele me atropelou. Mas, aos poucos, meu eu começou a ser notado. Embriagado de verdades e de doçura ele não mais cuspia mariposas. Ele recitava borboletas. Eu me encantei com o espetáculo. O meu eu que amava visitou-me novamente, mas mesmo assim eu não havia decidido amar. Eu assistia o vôo das borboletas. Mesmo que ele me beijasse eu não sentia as borboletas em mim. O espetáculo foi bonito e o meu eu que amava festejava em silêncio. Mas, assombradas pelo fantasma triste do meu eu que amava, as borboletas não voavam mais.
Quando ele acordou sóbrio e sério não existiam mais borboletas nele. Onde elas estavam? Eu vi sua transmutação em mariposa através de alguns desenhos que ele fazia sob o meu aparente descaso. Quando eu encostei meus lábios nos dele, eu buscava as borboletas, mas elas não estavam mais lá. Onde elas estavam?
Quando ele foi embora um silêncio me tomou. Por alguns segundos houve em mim um hiato. Durou pouco. Senti algo na boca do estômago, nas veias correndo. Pulsava a vida.
Descobri onde estavam as borboletas. Eu as havia engolido e elas dançavam dentro de mim.

Thursday, November 02, 2006

Mais uma vez ele não pergunta

Dessa vez ele não pergunta: “o que aconteceu?” Ele sempre pergunta e ninguém nunca responde. A mãe já tinha dito: “Esse garoto é muito estranho. Às vezes eu fico com medo. Ele olha com essa cara séria, parece que está me analisando. Ele me lembra um professor de Matemática que afirmava que tudo era Matemática. Vai que esse menino fica assim? Uma desgraça!” E hoje a mãe ficara séria, diferente daqueles olhares perdidos de sempre. Ela não tinha o ar tão ingênuo. Acho que dessa vez ela desistira. Eram quinze para as duas da tarde. O almoço já tinha desgastado a velha fórmula da política de boa vizinhança. A mãe já tinha quebrado o pau com a D. Candinha que insistia em reparar em quantos e como eram os homens que entravam naquela casa. “Eles não são meus namorados. Eles não são!” A vizinha já tinha dito pro menino não ficar triste com as coisas erradas que a mãe fazia. Ele fez aquela cara que a mãe tinha medo, mas a D. Candinha não entendeu e ficou achando que o menino era assim estranho por causa da mãe. Ontem à noite ela tinha feito um jantar bonito, ela se arrumou, se perfumou. O filho estava feliz, a mãe tinha um brilho no olhar. Ele mesmo ajudara a mãe a fazer o jantar, arrumar as coisas e tinha dito pra ela para não pôr aquele batom. Que ela tinha que estar natural, que não ficasse nervosa, que ele ia perceber. E disse que se o cara fosse machão, ele dizia que era sobrinho, ou até irmão. Ela falou “Não, meu bem. Ele não é que nem esses caras que vivem por aí xingando as mulheres, nem como o marido da D. Candinha que machucou a mãe daquela vez.” Ele era especial e ela já tinha contado que ele era seu filho. Que agora ele ia ter um pai de verdade. O menino sorriu, mas não porque ia ter um pai de verdade. Esse pai ele já tinha, a mãe não sabia que o dono do bar era o seu pai. Que foi ele que tinha lhe ensinado a soltar pipa, e que ajudava nos deveres de casa, que já tinha ido com ele ao Zoológico, e já tinha imitado todos os políticos da TV, e que ele lhe emprestava o jornal para ler. Ele não sorriu por ele, mas sorriu para a mãe. Agora sim, ela ia ter um marido de verdade. Mas eles esperaram a noite inteira e ele não apareceu. A mãe pra não jogar toda a comida fora convidou a filha da dona Candinha pra almoçar em casa e acabou aparecendo a mulher e o marido. A mãe disse: “Aniversário do Zezinho hoje, resolvi fazer banquete e exagerei na quantia.”D. Candinha que não perdia uma, já foi logo dizendo que viu a luz deles acesa até tarde. Perguntou se estavam esperando alguém, a mãe disse que sim, a avó. “Mas veja bem, minha filha, como é que uma velhinha vai se abalar de sua casa até aqui sozinha à noite, e com esse frio que vem fazendo, né pai? Aliás porque deixar a mãe sozinha? Será que não tem coração? Tem que trazer a mãe pra morar junto. Quem sabe assim...” “Quem sabe assim o que, D. Candinha? Vai, diz logo... A senhora acha que sou uma puta, não acha? Mas a senhora pensa isso porque seu marido veio pra cima de mim daquela vez... Pois fique a senhora sabendo que eu não tenho culpa da senhora ser uma incompetente que não sabe cuidar do seu marido. E além do mais, eu não fui a única que ele conseguiu desgraçar. Mulheres às dúzias fazem o que fazem por prazer de trair mulheres como a senhora.”“Mas é uma desbocada mesmo, Maria Antonieta vá já pra casa. Não quero que você escute essas bobagens da boca dessa... dessa... Dessa mãe desnaturada que não respeita nem a presença do filho.” Nessa hora ele corre pra abraçar a mãe, dando o sábio apoio que ela precisava. Sem nenhuma palavra ele conseguia consolar a mãe e os dois choravam juntos a magia de serem amor. Eram quinze para as duas da tarde e a essas alturas D. Candinha saía dali falando as mesmas coisas de sempre até chegar na sua casa. E mais uma vez ele não pergunta nada. “O que aconteceu?” Aconteceu o mesmo de sempre. Mas, se Deus já não se esqueceu deles, a mãe há de se aprumar... Qualquer dia desses há de se aprumar...